sexta-feira, 6 de março de 2015

QUANDO NOS ESQUECEMOS DE NÓS

Gauguin
Antonio Silva

            A mudança é sempre uma oportunidade de recomeçar. Mas, são poucos os que gostam de se mudar. Naturalmente mudança remete a passado, é reencontrar aquilo que enfiamos em uma gaveta para nunca mais lembrar. A mudança é o reencontro com a memória, é a prova de que o passado segue vivo no fundo do armário.
            Aquela família era quase uma andarilha. Era incompleta em quase todos os sentidos. O marido não tinha mulher os filhos não tinham mãe. Uma casa sem mãe nunca será um lar. Uma mudança sem a mãe ou a esposa é certeza de esquecer as coisas mais importantes.
            Eles tinham muito pouco. Tudo foi em poucas caixas, as roupas, os móveis, as lembranças, tudo em pequenas caixas. Para eles a mudança não tinha mais o sentido de recomeço, mas, sim a oportunidade de esquecer. Mudar-se era esquecer, afinal alguma coisa sempre ficava para trás.
            Esquecer alguma coisa é absolutamente normal, às vezes, até deixamos na antiga casa coisas que não queremos mais, ou às vezes, não forçamos a memória para lembrar-se do que deixamos pelo caminho.
            Aparentemente eles não esqueceram nada, quando se tem pouco, poupa-se a memória, já que tudo cabe no olhar. Tenho certeza que levaram todos os bens materiais, todos os objetos pessoais, tudo aquilo que representou uma conquista em suas vidas.
            Mas, esqueceram-se do seu amor, da única demonstração de amor que ainda provava que eles eram humanos capazes de amar. O pior é que se tivessem esquecidos, poderiam usar a desculpa da pressa, da ansiedade e de tantas outras coisas para voltar buscar, mas não eles deixaram para se livrar.
            Deixaram na antiga casa os dois cães que acompanhavam a família. Deixaram, largaram, desprezaram os dois cães que os amavam com toda a sinceridade mesmo diante da fome, da sede, dos maus tratos, deixaram pelo caminho a última chance que o amor lhes deu.
            Os cães não tem esperança. Eles são a própria esperança. Os dois seguem em uma permanente vigília na casa esperando o dono voltar, protegem a casa. Esperam pacientemente o retorno daquele que um dia prometeu um lar.
            Dormem ao relento, passam fome, frio e outras tantas privações, mas não perdem a pureza. Quando passo por eles abanam o rabo e com um olhar triste parecem perguntar – Você sabe quando eles voltam, estamos com saudades – passo por eles em silêncio tentando entender como esses animais tem uma capacidade inimaginável de perdoar.
            Tenho certeza que se eles voltassem busca-los, seriam recebidos com muita festa. Jamais cobrariam os dias de sofrimento, de abandono. Simplesmente seriam recebidos com todo o amor que um animal pode dar para alguém.
            Para os cães é mais importante amar do que cobrar ou exigir, para os cães o abandono, a infelicidade é apenas um motivo para amar ainda mais, a incompreensão, o ódio, a tristeza tudo isso pode ser esquecido com um simples afago, um carinho simples, um sorriso simples.
            Todo o perdão vem da felicidade e ternura. Tudo na vida de um cão é festa quando consegue fazer alguém feliz, só assim eles são felizes também.
            Pena que os humanos ainda não entenderam isso.


 PUBLICADO NO JORNAL
 FOLHA DE NOVAHARTZ
 SEMANAL EDIÇÃO N° 366
 SEXTA-FEIRA 06 DE MARÇO DE 2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário